quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Derrota do bolsonarismo, normalidade democrática e recomposição da hegemonia neoliberal


        
As elei
ções municipais de 2020 estão inscritas na história por ocorrerem em meio a uma crise orgânica do capital e no curso de violento choque neoliberal que impulsiona a reestruturação produtiva visando intensificar a superexploração e a espoliação da classe trabalhadora, aprofundando a lógica perversa do capitalismo dependente e periférico. A realização das eleições em contexto de isolamento social por conta da pandemia de Covid-19, associado ao aumento do autoritarismo e da violência de Estado, está se revelando como um cenário propício para recomposição da hegemonia do projeto neoliberal, uma vez que reprime drasticamente a capacidade de mobilização social das classes subalternas e das forças de oposição.
        O pleito em curso expressa muito mais o aprofundamento do processo de desfiguração da Constituição que foi parâmetro para regulação político-social desde 1988 do que a possibilidade de restituição da normalidade democrática, como alguns preferem pensar. Não é demais lembrar que “a festa da democracia” de 2020 está se dando por cima do genocídio programado pelas classes dominantes que já vitimou mais de 165 mil pessoas no Brasil, desde o seu início. Qualquer ilusão de normalidade democrática num contexto como este é pura expressão de cinismo criminoso ou de indigência intelectual grave.
        Neste contexto, o campo da esquerda institucional brasileira considera que o desafio central dos trabalhadores é derrotar o projeto neofascista que almeja o fechamento do regime político. A tática adotada, para tanto, é a formação de frentes eleitorais para derrotar o bolsonarismo nas eleições municipais, visando uma posterior derrubada do Presidente por impedimento ou nas eleições de 2022. Vale destacar que a tática de frentes eleitorais tem diferentes modulações como um degradê. Numa tonalidade mais moderada, a chamada Frente Ampla admite a aliança de partidos da esquerda social-liberal, de centro e da direita liberal (considerada democrática), todos juntos em defesa da institucionalidade democrática, mesmo que burguesa, periférica e cada vez mais abstrata. Outra de tonalidade um pouco mais escura seria a chamada de Frente de Esquerda. Um pouco mais demarcada ideologicamente, mas tentando fugir aos “sectarismos”, propõe um arco de alianças apenas com os partidos de esquerda, tentando atrair aqueles da esquerda social-liberal a partir de um programa mínimo. O resultado da dinâmica de materialização dessas táticas tem se mostrado bastante complexo, mas predomina combinações bizarras entre partidos de A a Z, sem um programa de oposição ao neoliberalismo claro e incapaz de recuperar o entusiasmo das massas. Um balanço mais completo das alianças e dos desdobramentos da movimentação dos partidos de oposição é necessário e mais adequado ao fim do segundo turno das eleições.
        Entretanto, encerrado o primeiro turno, já se pode constatar que o único alento da esquerda social-liberal foi a importante derrota eleitoral sofrida pelos candidatos apoiados por Bolsonaro. A esquerda social-liberal também perdeu muitas prefeituras, embora tenha apresentado relativa resiliência.  Vitoriosos mesmos saíram os partidos da direita tradicional e do chamado centrão, estes que contribuíram com as eleições de Lula, destituição de Dilma, apoiaram a eleição de Bolsonaro e orquestraram todas as políticas de choque ultraliberal até então. São eles, os partidos orgânicos da ordem, que parece estarem voltando para o centro dirigente da hegemonia neoliberal. São longos ciclos de relativas mudanças para conservação da ordem, marca indelével da formação política e econômica brasileira. 
       Embora o primeiro turno das eleições tenha expressado significativa alteração do sentimento da população em relação ao bolsonarismo, um escrutínio mais apurado do processo é necessário, sob o risco de não diferenciarmos bem o acessório e o essencial desta dinâmica de recomposição das relações de hegemonia. Numa análise de conjunto é fundamental examinar os movimentos que as táticas de frentes de oposição estão produzindo na corrrelação de forças e avaliar até que ponto a substituição forças políticas da chamada extrema-direita nos governos municipais por forças da direita tradicional e do chamado centrão, transformou a esquerda social-liberal e seus satélites em forças auxiliares da recomposição da hegemonia neoliberal. Uma coisa é certa, do ponto de vista tático, as classes dominantes se renovaram, se fortaleceram para aprofundar as próximas contrarreformas e se cacifaram para chegar em 2022 em condições de disputar a presidência da república.
        Já no campo das esquerdas, a grande novidade parece não estar relacionada com as alianças amplas, mas com sim uma oposição que buscou relativamente se diferenciar da esquerda social-liberal, talvez deixando mais uma vez a lição de que o taticismo, o transformismo e a pequena política não são alternativas viáveis para a classes subalternas, sequer do ponto de vista eleitoral. Construir uma antítese vigorosa à ordem capitalista é o único, longo e necessário caminho.