Tenho tentado contribuir no combate ao golpe empresarial-parlamentar-jurídico-midiático de 1916, afirmando a necessidade de as esquerdas brasileiras fazerem um balanço crítico dos 13 anos de governos petistas. Isso por entender que tais forças vêm operando a política em grande medida a partir de ferramentas teórico-práticas próprias à concepções de mundo que legitimam e reproduzem o modo de vida que supostamente buscam combater.
Sem um balanço histórico-crítico do modo de pensar e agir da esquerda brasileira, dificilmente conseguiremos construir condições para que o povo possa compreender e se contrapor ao caráter liberal-conservador-escravocrata do empresariado brasileiro e suas "camaleônicas" superestruturas políticas, jurídicas e midiáticas.
Boa parte dos intelectuais brasileiros mais identificados com as forças de esquerda estão resistindo a tal tarefa, sob o argumento de não darem munição ao inimigo principal. Parecem ignorar que a análise histórico-crítica busca exatamente combater as formas de pensar, sentir e agir dos dominantes, quando elas já passaram a dar a direção intelectual e moral daquilo que pensamos ser nosso.
Felizmente tenho encontrado alguma ressonância sobre aquilo que penso ser tarefa indispensável, sem a qual não sairemos da enrascada golpista que está destruindo o Brasil. Trata-se da entrevista do Sociólogo Jessé Souza (ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA), concedida ao site Brasil de Fato, por ocasião do anúncio de lançamento do seu mais novo livro, A Elite do Atraso – da Escravidão à Lava Jato, que será lançado em setembro deste ano.
Reproduzo, a seguir, a íntegra da reportagem do site Brasil de Fato, editada por Camila Rodrigues da Silva.
"A
compreensão do Brasil que a esquerda tem foi construída exatamente pela elite
econômica e financeira". A afirmação é do sociólogo Jessé Souza, que
lançará o livro A
Elite do Atraso – da Escravidão à Lava Jato em
setembro.
Ele argumenta, fazendo uma recuperação histórica, que a elite paulistana
constrói um aparato simbólico quando perde o Estado para as forças
comandadas por Getúlio Vargas na revolução de 1930.
"Ali se monta o bloco antipopular que vai marcar o Brasil moderno.
E essa elite foi sofisticada: ela tinha o poder econômico e tinha
perdido o poder político. Ela decidiu criar um poder ideológico, para que,
mesmo longe do poder político, ela pudesse reconquistá-lo e manter a dominação
sobre a sociedade como um todo pelo nível das ideias", elabora.
O autor fez
uma apresentação da obra na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em
Guararema (SP), e conversou com o Brasil
de Fato. No estudo, Souza trabalha com o surgimento
dos termos "patrimonialismo" e "populismo" que, segundo
ele, baseiam ideologicamente o neoliberalismo e as críticas ao Estado no país —
noções que os partidos de esquerda não conseguiram se desvencilhar.
Para o ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA),
a falta de narrativas facilitou processos de golpes de estado no país todas as
vezes em que líderes e partidos populares chegaram ao poder. Como alternativa,
o sociólogo aposta na democratização do estado e da mídia e no fortalecimento
da TV pública.
Confira os principais trechos da conversa:
A Elite do Atraso
O principal aspecto que procurei analisar nesse livro foi a construção
da elite econômica e do pacto antipopular que se monta no Brasil depois da
libertação dos escravos.
Esse caminho tem que ser reconstruído porque a esquerda foi apropriada
em grande medida pela direita. A esquerda pensa com categorias da direita. A
compreensão do Brasil que a esquerda tem foi construída exatamente pela elite
econômica e financeira.
A elite paulistana constrói um aparato simbólico quando perde o estado
para as forças comandadas por Getúlio Vargas na revolução de 1930. Ali se
monta o bloco antipopular que vai marcar o Brasil moderno. E essa elite
foi sofisticada: ela tinha o poder econômico e tinha perdido o poder
político. Ela decidiu criar um poder ideológico, para que, mesmo longe do poder
político, ela pudesse reconquistá-lo e manter a dominação sobre a sociedade
como um todo pelo nível das ideias.
Essa elite começa a dizer que o grande problema nacional é o
patrimonialismo. Esse conceito não é o único, um outro conceito criado na USP
[Universidade de São Paulo], na década de 1960, chamado de populismo.
O patrimonialismo e populismo são as duas ideias mais importantes para a
dominação conservadora entre nós, porque elas são os dois pilares de um tipo
muito específico de liberalismo que se constrói no Brasil e que é extremamente
conservador, porque aposta na exaltação do mercado e aposta na falência do estado.
Não só a direita, que é quem recebe as vantagens materiais disso, mas a
própria esquerda. O que explica, em grande medida, o fracasso da esquerda
quando ela chega ao poder. Ela não reflete, não percebe as implicações que
essas ideias para a conduta e para o comportamento político.
O patrimonialismo monta uma história sem pé nem cabeça: que a corrupção
do estado vem desde Portugal, que é uma ideia absurda, porque em 1380 não
existia corrupção; é uma bobagem histórica dizer isso. A gente tem que dessacralizar
essas ideias.
Golpe parlamentar
O golpe não deu certo. Para que você reproduza qualquer acontecimento
histórico no tempo, você tem que legitimá-lo. Um golpe que você possa
desconstruir; de uma mídia desregulada, de uma elite saqueadora você pode, inclusive
em pouco tempo, reverter.
A briga política é um processo e não um estado. Isso tem um
prolongamento no tempo. O fato de ele não ser legitimado é fundamental para que
ele se reproduza no tempo.
Se você comparar este golpe ao golpe militar, em que as pessoas votavam
na Arena [durante a ditadura, eleições para cargos do Legislativo foram
realizadas a cada dois anos, embora o poder de decisão fosse transferido ao
Executivo], havia crescimento econômico de 10% ao ano. O que é uma coisa muito
ambígua. Os trabalhadores do campo foram lembrados pela primeira vez pelos
militares por [Emílio] Médici.
A dinâmica deste golpe é completamente outra. É uma dinâmica
capitalista-financeira, de sugar tudo o que puder no mais curto espaço de
tempo. Esse pessoal está achando que não precisa mais da política. Querem
entrar logo e mandar.
É um golpe muito forte na imposição, no curto-prazo, mas a médio e
curto prazo ele tende a ser frágil, porque você precisa ganhar a cabeça das
pessoas, o coração e a mente das pessoas. E ele não ganhou e, aposto, não
vai ganhar.
Ausência de narrativas
A [Operação] Lava Jato deixou a esquerda sem ação por dois anos. A
esquerda não tinha uma narrativa para se confrontar à Lava Jato. Estamos
pagando pelo que a esquerda não fez.
O que eu acho que deveria ter acontecido era o fortalecimento dos
movimentos sociais, muito mais do que houve, por exemplo, do MST [Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra], que, para mim, é, de longe, o movimento
popular mais interessante; era preciso ter brigado por uma televisão popular,
que eu sei que isso não era percebido sequer como uma coisa importante.
A situação atual é muito, muito pior. Só temos as redes sociais, que é
muito importante, mas é um elemento que está sob pressão e sob ataque. A rede
social, em grande medida, ainda reproduz as grandes mídias, que não perderam
seu poder de pautar o debate. A esquerda não fez sua própria apropriação do que
aconteceu.
Eu acho que o erro foi não ter montado, quando [o tema da corrupção]
começou a ter uma maior importância, as condições para que se pudesse ter uma
reforma política, para que a política não fosse comprada pelo dinheiro. A
narrativa que nos faz de imbecil é dizer que a política está sendo comprada por
indivíduos. Isso não é verdade: a política é comprada pelos interesses privados
organizados no mercado, que é muito diferente disso.
Mas isso nunca foi explicitado. A esquerda nunca montou uma narrativa
sobre isso. O único agora que está aproveitando e está tocando nesse tema é o
Ciro Gomes [nome cotado para candidatura à Presidência pelo PDT]. Eu acho que o
projeto da elite financeira tem que ser reconstruído e tem que ser posto no
lugar. É o que estou, modestamente, tentando fazer com a minha contribuição que
é o meu livro.
Eu tento contrapor a corrupção dos "tolos" e
"imbecis", que somos nós, que é pensar a corrupção como dado da
política; e a corrupção real, que é a corrupção do mercado, que compra a
política para isso. Deixar isso claro, para mim, é o ponto principal. E aí que
você tem um extraordinário mote para desconstruir essa balela de Lava Jato.
Democratização do estado
A esquerda acha que poderia ocupar o poder apenas com um plano
econômico. Eu acho que tem que apresentar um plano econômico alternativo. Claro
que tem que apresentar. Mas não pode ser apenas isso. Temos que apresentar uma
interpretação da sociedade como um todo, que é isso que não estou vendo.
Eu não estou vendo o discurso da classe dominante sendo desconstruído e
um outro discurso, sobre qual estado vai ser necessário. O estado participou de
um golpe. Isso é um absurdo. As corporações do Ministério Público querem
vantagens, dinheiro, privilégios. Isso não pode continuar assim. Onde está esse
novo projeto de estado? Se você apresenta só um plano econômico, você vai
implementá-lo em qual estado? Tem que ter uma interpretação que seja
totalizadora e não apenas um plano econômico.
Raça e classe
É claro que as questões da minoria são fundamentais, mas elas não podem
ser desligadas das questões de classe. A classe é a distribuição de riqueza e
poder. Quando os movimentos não estão ligados a isso, eles ajudam o capitalismo
financeiro — que não quer saber se você é branco, preto, heterossexual ou gay.
Ele vai te explorar do mesmo modo e ainda tirar onda de ser emancipador. É um
tema muito importante, mas dificílimo.
A classe não é nem a renda, como o liberalismo diz, nem é só o seu lugar
na produção, como o marxismo diz. A esquerda, tanto como o liberalismo, percebe
a classe como um instante econômico. Mas não é. A classe é o que você recebe do
seus pais, da sua família, que vai dar um ponto de partida que vai ser muito
semelhante a várias outras pessoas que tem herança familiar, que vai definir
que tipo de escola você vai ter e, depois, que tipo de acesso ao mercado de
trabalho você vai ter.
No Brasil, por conta do passado escravista, essa classe mais baixa é
ligada aos escravos. Então, existe uma ligação entre classe e raça extremamente
importante. E, como a classe é invisível, sobre a raça — porque a raça é visível.
Então há uma ligação de temas que são raciais, mas também é uma questão de
classe. O que facilita para a polícia, porque é uma classe que você persegue
enquanto classe.
O fato de a classe ser invisível é o que faz com que a elite possa
dominar. Os movimentos identitários da própria classe popular não devem
reproduzir essa inviabilização das classes porque elas podem servir para
plataformas de curto-prazo. A Rede Globo, por exemplo, é a campeã das lutas
identitárias.
Segue o link da reportagem: